sábado, 23 de julho de 2011

Raízes profundas





É bastante comum se ouvir pessoas maduras afirmarem que sofreram muito em sua infância ou em sua adolescência e que, de maneira alguma, desejam o mesmo para seus filhos.
Recordam terem iniciado cedo a trabalhar para auxiliar nas despesas do lar, dos desejos que jamais foram concretizados, como a bola de futebol, a bicicleta nova, a viagem de recreio.
Lembram de certas privações, de não terem tido privacidade quando gostariam, porque necessitavam dividir o quarto com os irmãos, pela falta de espaço na casa dos pais.
Recordam e recordam, com certa amargura, o que lhes constituiu dificuldades e reafirmam que tudo farão para que seus filhos não tenham que experimentar nada daquilo.
Por isso mesmo, crescem os meninos e meninas sem maiores problemas.
Vão a escola, levam dinheiro para o lanche, nem sempre saudável, viajam nas férias, brincam e folgam.
Nada lhes falta, para que não sofram, para que não se frustem, para que não tenham decepções.
Nada em esforço lhes é exigido.
Nada que desejem deixam de receber.
Vendo tantos pais assim procederem, nos recordamos de um médico americano que, além de curar os seus doentes, tinha por objetivo transformar o terreno de sua casa em uma floresta.
Vivia a plantar árvores.
Bastava retornar do hospital e das visitas rotineiras aos pacientes, para se enfiar em um macacão, colocar um chapéu de palha à cabeça, luvas nas mãos e sair para o quintal.
O inusitado não era o passatempo do médico mas a forma como ele tratava as árvores novas.
Ele não as regava.
Dizia que regar as plantas fazia com que crescessem com raízes superficiais.
As árvores que não eram regadas, dizia, necessitavam criar raízes profundas para procurar umidade.
Isto lhes concedia maior firmeza.
Falava com as árvores e as motivava a crescerem fortes, a fim de enfrentarem os ventos frios, as tempestades.
E as árvores se tornavam rijas, parecendo dizer que as adversidades e as privações as tinham beneficiado.
Nossos filhos, como as árvores do bom médico, talvez encontrem adversidades na vida.
Talvez tenham que percorrer caminhos difíceis, enfrentar ventos frios de solidão, de desesperança.
Eles também necessitam criar raízes profundas, de modo que não sejam abatidos quando as chuvas caírem e os ventos soprarem fortes, tentando derrubá-los.
Aprendamos a dizer não, vez ou outra, a fim de que os nossos filhos aprendam que nem tudo lhes estará sempre disponível.
Mesmo que não seja necessário, confiemos a eles tarefas, exigindo que as executem, para treinar responsabilidade.
Em síntese, ensinemos nossos filhos a andar sozinhos, a enfrentar problemas, a lutar pelo que desejam, para que enrijeçam o caráter e cresçam fortes como o carvalho e sejam firmes como a rocha.
***
Pais e mães reflitamos no fato de que criamos nosso rebentos para a vivência do mundo, na sociedade.
Assim, ofertemos a eles a melhor estrutura, ensinando-os a cooperar no lar, para que aprendam amanhã a cooperar no mundo.
Pensemos nos tempos difíceis do mundo e preparemos nossos filhos para que os enfrentem com vigor.
Ocupemos as suas mãos com o trabalho honrado, coloquemos em suas mentes a luz do evangelho e os ensinemos a valorizar o tempo, o dinheiro, a saúde, a inteligência, tudo enfim de que sejam dotados.

(Pesquisa 1 - Vereda Familiar - cap. 18 2 - Seleções do Reader’s Digest 04/99 "O que aprendi com os vizinhos")

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Meu filho, você não merece nada



A crença de que a felicidade é um direito tem tornado despreparada a geração mais preparada

Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.
Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.
Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste.
Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os insistentes.
Por que boa parte dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento importante para quem está educando uma criança ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”. Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.
É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades individuais?
Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa. Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor. Bacana é o cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu lugar no país.
Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do “eu mereço”.
Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não é como os pais tinham lhes prometido. Expressão que logo muda para o emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações – e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.
A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos combinaram com a vida que seria fácil”? É no passar dos dias que a conta não fecha e o projeto construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão. Ninguém descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer – este momento é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer se não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.
Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo, o item principal do pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir aos filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da sensação de se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que seja da vida, que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo, porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar construído sobre a ilusão da felicidade e da completude.
Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém está disposto a escutar, porque escutar significaria rever escolhas e reconhecer equívocos – o mais fácil é calar. E não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não se comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano sem que ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa.
Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos pais caberia garantir esse direito – que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir.
Aos filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na própria pele dia após dia. É pelos objetos de consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o jogo funcionando.
O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela que paralisa.
Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de realidade. Com tudo o que a realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem. Não é complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.
Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua”. Assim como sentar para jantar e falar da vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas, estou com medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir”. Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode significa dizer ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria da existência. É tão ruim quanto ligar a TV em volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico possa ser dito.
Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia. O melhor a fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou para descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência.
Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado porque um dia ela acaba.
(Eliane Brum - Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). - E-mail: elianebrum@uol.com.br - Twitter: @brumelianebrum)

domingo, 3 de julho de 2011

Mentiras



Minto todos os dias. Minto para várias pessoas. Minto para proteger a mim e aos outros. Minto para me esconder. Minto para cumprir convenções sociais. Minto descaradamente ou sem perceber.
Os estudos sobre o comportamento mentiroso indicam que contamos, em média, 200 inverdades (uma forma educada de evitar a repetição de palavras) por dia. A maioria delas são de pequeno porte e de perna curta. São atos circunstanciais, que asseguram a sobrevivência cotidiana, evita conflitos por bobagens e driblam obstáculos desnecessários para a convivência, inclusive com aqueles que merecem ouvir mentiras sempre.
Descontando as mentiras tóxicas, fraudulentas ou de má fé, enganamos quase sempre sem premeditar. As pequenas mentiras flertam com o irracional, o instintivo, nascem pela ausência de reflexão, pela vontade de seguir em frente, despachar alguém ou uma situação com potencial dano.
Enganamos quando dizemos bom dia para o vizinho insuportável. Mentimos quando elogiamos a roupa bonita da namorada para garantir uma noite sem melindres. Somos estelionatários afetivos quando enaltecemos o desempenho sexual do(a) parceiro(a) para não magoá-lo(a). Fingimos adorar um filme para que o amigo-fã não tumultue a pizza pós-espetáculo.
Elogiamos a comida da sogra pelo bem do casamento. Não o dela, claro. Concordamos com as ideias do chefe para garantir o salário do próximo mês. Prometemos aos deuses mudança de comportamento, tremendo de medo pela punição dos céus ou de viajar ao inferno sem direito ao purgatório.
E quando mentimos para blindar alguém da dor? É o caso de um amigo que escondeu o desemprego de um parente para preservar o casamento dele. A encenação envolveu levá-lo ao trabalho-fantasma por dois meses.
A dor pode ser mais aguda no momento em que morte e mentira dão as mãos. Tentamos fraudar a morte o tempo todo. De cara, legislamos em causa própria. Fazemos o que for possível para evitar um encontro com o sujeito de capa preta e foice na mão direita, o anjo da morte ou ceifador, qualquer que seja o nome que as culturas dão a ela.
Desejamos ignorá-la quando se aproxima para levar alguém querido. Procuramos por milagres, acendemos velas para todas as crenças, fazemos promessas tão mirabolantes que envergonhariam o mais sujo dos políticos. Tudo por um pouco mais de tempo com aquele que, muitas vezes, juramos socar por mesquinharias e outras tralhas que habitam nossa pequenez.
Quando a morte (ou qualquer muro intransponível) se aconchega, adotamos o mundo das ilusões. Conheço pessoas que souberam da morte de entes queridos meses depois porque parentes pretendiam protegê-las. O sentimento de traição do “protegido” pode ofuscar a dor da perda. Um esqueleto a mais para trancar no armário, geralmente lotado de artificialismos ou de contas não acertadas.
A mais grave das mentiras, porém, sobrevive e se realimenta em vida, no permanente exercício do auto-engano. Mentiras recitadas para outros, ainda que minúsculas, podem ser avaliadas, consertadas, até passíveis de desculpas ou de arroubos de sinceridade.
O problema está nas mentiras que contamos para nós mesmos, cegos pela certeza de uma verdade que nunca existiu. Jamais duvidar de si e dos próprios caminhos é o veneno que perpetua a cegueira de quem não percebeu a mentira exaustivamente reprisada como dogma.
(Baseado e texto de Marcus Vinicius Batista)